Estão, aos poucos, a levantar as restrições e a deixar-nos sair de casa. E eu quero, a sério que quero... mas não consigo.
Fiquei sem força nas pernas devido à falta de actividade física. Ao que parece, o percurso quarto-sala-cozinha-WC, além de não contar como “passeio higiénico”, também não é suficiente para se manter a estrutura óssea e muscular. Por isso, ando agora sobre duas espécies de fios de esparguete em água morna.
Estou meio cego por ter passado o tempo todo a fazer binge watching de séries e filmes. E, porque ultimamente as empresas de audiovisual têm lançado uma generosa panóplia de plataformas, aderi a todas, e fiquei sem dinheiro para comprar um par de óculos.
Não ouço praticamente nada porque tenho os ouvidos imundos. Com tanta conversa de testes e zaragatoas, fiquei com trauma a cotonetes. Tenho tentado chegar lá ao fundo com o piaçaba, mas não é a mesma coisa – e, tendo em conta a natureza do objecto, é até contraproducente.
Ganhei problemas respiratórios por causa das máscaras. Tendo em conta que na rua há enormes quantidades de oxigénio, eu não ia ter pulmões para isso tudo, porque os meus já se desabituaram a processar tanto ar de uma vez.
Por fim, desenvolvi agorafobia, e “agora” tenho “fobia” de multidões. Ver muita gente junta faz-me confusão, e falar com outros seres humanos parece-me quase obsceno. No fundo, já não sei bem como agir em sociedade.
Acho que há uma nova série que fala sobre isso... Se calhar vou ficar cá por casa a vê-la.
Mais logo desconfino, se não houver uma segunda temporada.
A Dona Eulália, como qualquer ser humano, é uma criatura de contrastes. Só que o caso dela é quase patológico.
Estamos em 2020, (ainda, infelizmente) no contexto de uma pandemia. Por esta altura, praticamente toda a gente já conhece mais ou menos os procedimentos: lavar as mãos tornou-se compulsão, o gel desinfectante passou a bem de primeira necessidade, entrar em curto-circuito mental quando alguém se aproxima de nós é agora regra e as máscaras são um acessório como qualquer outro. Mais depressa saímos de casa sem cinto a segurar as calças do que sem máscara a segurar as gotículas.
E a Dona Eulália, justiça lhe seja feita, compreende bem os perigos da situação; só que, dez meses depois, ainda não sabe bem como se deve governar. Mulher de convicções fortes, sempre que há um novo pico de infecções vai para a internet afirmar que devia-se era fechar os aeroportos, fechar os bares, fechar as fronteiras e fechar o Mundo, no geral. Só não se devia fechar era a pastelaria ali da esquina, porque é lá que o café lhe sabe melhor e o senhor Antunes até tem muito cuidado com isto do vírus, já que está sempre a limpar as chávenas com aquele paninho que também usa para limpar o balcão.
Queixa-se a senhora de fazer parte do chamado grupo de risco, e de ninguém pensar nos mais vulneráveis; mas também diz que lhe dá pouco jeito usar máscara – no Verão porque está muito calor e no Inverno porque, com os óculos, aquilo fica tudo embaciado, e é uma chatice –, e que aquilo irrita-lhe principalmente a zona do nariz. Por isso, prefere andar com ele a espreitar por cima do acessório e a intrometer-se nas vidas alheias.
E se, de facto, alguém à volta dela apanha a doença, é muito importante para a Dona Eulália que se ostracize aquela pessoa, porque aquilo não pode ser boa rês e, se se infectou, é porque deve ter andado por aí a fazer o que não devia.
Nos dias de hoje – e depois de muitas reprimendas que lhe deram nas filas do supermercado –, a Dona Eulália já percebeu pelo menos que tem de manter o distanciamento social; mas, ao mesmo tempo, quer ter a casa cheia no Natal, como se a família dela tivesse sido a única a receber imunidade dentro do sapatinho. E, se fecham as estradas, ela reclama do Governo e dessa gente da política, porque não são um ou dois dias que vão fazer diferença e o bacalhau até já está demolhado, e era uma pena perder-se.
Para essa coisa da vacina é que não contem com ela... Sim, é verdade que passou semanas e semanas a criticar a demora que “essa gente” faz para arranjar uma solução, mas, agora que ela realmente existe, a Dona Eulália dispensa a seringa, porque tem medo dos efeitos secundários. Toma cinco comprimidos de manhã que lhe dão cabo do fígado e dos rins, dois ao almoço que lhe mexem com as hormonas e fazem crescer o buço e bebe uma ampola com um chá de várias ervas do quintal que lhe disseram na televisão que era bom para fortalecer as dobradiças corporais. Mas a vacina é que não! Os outros que a tomem primeiro, para ver se é segura.
Apesar de tudo isto, a Dona Eulália há-de viver até aos 100 anos. Mas só se Deus quiser, já que ela, pelos vistos, não faz questão.
Por falta de meios – e, sinceramente, paciência –, tenho andado a descurar a minha higiene pessoal.
Deixei de tomar duche. O cheiro é intenso, mas uma pessoa depois habitua-se. A pior parte é que as moscas ficam aqui a rondar. Nunca desejei tanto ter uma cauda.
Não corto as unhas desde o início da quarentena. O que é bom para apanhar teias de aranha nos cantos mais difíceis da casa, e até para coçar alguns orifícios pessoais. Sou uma espécie de Eduardo Mãos de Tesoura, mas um bocadinho mais pálido.
Da barba e do cabelo já perdi completamente o controlo. Estão-me ambos pelos joelhos, o que até dá jeito nas refeições porque já não preciso de um guardanapo de colo quando estou sentado. Fica tudo na barba, e assim até se armazena comida para mais tarde.
O cotão do meu umbigo já dava para tricotar uma bela "suéra" para o Tiaguim. Pena que eu não sei fazer tricô, e por isso tenho-o usado só como almofada.
Os dentes também precisavam de um bom esfreganço, e só reparei nisso quando as plantas começaram todas a desfalecer assim que eu lhes dirigia a palavra. Agora não tenho com quem falar.
Enfim, mas mantenho-me optimista, porque todos dizem que vamos sair disto pessoas mudadas.
E eu confirmo, porque já vejo esse efeito. Estou, aos poucos, a regressar aos tempos das cavernas.
Não sei que dia é, e já só tenho uma vaga ideia de que horas são.
Por falta de outros meios de diversão aproveitei os calendários para jogar ao bingo, e já nenhum relógio da casa tem pilhas porque usei os electrólitos que tinham dentro para desinfectar as bolas à medida que iam saindo da tômbola.
Também para ajudar ao desnorte, chegou há uns dias (não sei bem quantos) a mudança para a hora de Verão. Uma pessoa já estava habituada ao ritmo de Inverno e agora tem de adormecer mais cedo para ver se não apanha um escaldão na cama logo pela manhã.
Aliás, não me posso sequer aproximar das janelas para ver em que posição está o Sol, porque a deficiência de vitamina D já é tanta que me tornei uma espécie de vampiro hipocondríaco.
Nem os aparelhos electrónicos me podem dar alguma dica. Deliguei-os todos, porque já não aguentava tantas notícias. Antes era a voz do Rodrigo Guedes de Carvalho a explicar coisas na televisão que me indicava que já eram horas de jantar. Hoje, quiçá, vou jantar às cinco da manhã, porque já ninguém me explica nada.
Por favor, confirmem-me só se já chegámos a Julho de 2023.
É porque combinei um casamento com uma pessoa para essa altura, e se eu não aparecer no altar ela vai ficar bastante chateada.
Alguns produtos começam a escassear, e vejo-me obrigado a recorrer ao improviso.
A comida está a dar as últimas, mas hoje ainda consegui comer uma fatia de queijo flamengo e duas metades de duas azeitonas, que quando juntas fizeram uma azeitona completa. E até aproveitei o caroço para servir de tempero a futuras refeições. Por enquanto não me posso queixar.
O sabão da loiça acabou. De momento estou a lavar os pratos e talheres com gel de banho, que isso comprei em doses industriais. Espero que não seja muito estranho comer em loiça a cheirar a duche.
O papel higiénico também já era – talvez por eu ter estado a forrar a casa toda com ele. Vale-me o facto de ter guardado todas as cascas das bananas que tenho comido, por o primo de um tio da namorada de um médico do Hospital Santa Maria me ter dito no WhatsApp que o potássio era muito bom contra o vírus. Homem prevenido, cu lambido, já dizia a minha avó (e já na altura eu achava um ditado estranho).
Finalmente, em termos de vinho, a situação também não está famosa. Tenho bebido os frascos de perfume que tenho em casa, já que tão cedo não me vou perfumar para sair à rua. Ainda ontem, ao jantar, abri um belo Paco Rabanne, e estou a guardar um Dior Reserva para uma ocasião especial.
Apesar de tudo, estou bem, não se preocupem.
Podem é trazer-me mais bananas, que dão jeito quer para a alimentação, quer para a higiene.
A torradeira queima imediatamente qualquer fatia de pão que eu lá ponha. Já o microondas parece ter optado pela estratégia oposta, de não aquecer aquilo que lhe peço. Estou há duas horas a aguardar que amorneça uma sopa.
A máquina de lavar a roupa descolorou-me as cuecas, que agora parecem lindos chapéus da moda contemporânea. Talvez ainda lhes dê uso quando isto acabar.
O congelador do frigorífico está a criar quantidades enormes de gelo, de tal forma que já é pouco o espaço que lá tenho para colocar alimentos. Penso que seja uma estratégia para me ir matando à fome aos poucos.
O fogão está só armado em parvo, a mandar bocas foleiras. E, sendo que tem quatro bocas, até irrita bastante.
Mas o mais grave é que aconteceu hoje a primeira declaração aberta de guerra. O forno queimou-me o dedo grande da mão esquerda.
Não sei quanto mais tempo consigo aguentar a paz podre que se vive neste lar.
Até tirava a t-shirt para andar à bulha, mas não consigo. A máquina encolheu-a.
Fui esperto, comprei o stock todo. Depois cheguei a casa e foi um tal tapar tudo com papel higiénico.
Tapei as portas, tapei as janelas, tapei as paredes e o tecto. Tapei os tapetes, tapei o lustre, tapei a areia do gato e tapei até a chaminé, não fosse aparecer-me lá de surpresa um Pai Natal com uma saca cheia de COVID-19.
Tapei também a secretária, os sofás, as camas e as mesinhas-de-cabeceira. Tapei a televisão, mas com papel de uma só folha, para conseguir ver mais ou menos as notícias. O Rodrigo Guedes de Carvalho aparece-me agora no ecrã meio enevoado, parecendo o D. Sebastião. É um efeito muito giro.
Fui à casa-de-banho e fiz questão de tapar tudo, também. Tapei a sanita, tapei o duche, tapei o lavatório e tapei o bidé. Tapei até o papel higiénico com outro papel higiénico, só para garantir que o de dentro não perecia.
Na cozinha, a mesma coisa. Panelas, talheres, pratos, copos e géneros alimentícios, tudo tapado individualmente. Fogão, torradeira e microondas também, e a máquina do café só destapo de manhã porque eu cá sem cafeína não me governo.
Tenho tudo pronto, tudo tapado. Não há vírus que me apanhe.
Agora só me falta arranjar uma maneira de limpar o cu.
O ano era 2002: O debate sobre a eutanásia em Portugal estava ao rubro (devido à recente despenalização holandesa), Fabio Liverani era criticado no seu país por ser o primeiro jogador negro da selecção italiana de futebol, os EUA estavam em guerra com metade do Médio Oriente e Cláudio Ramos fazia parte do Big Brother, na TVI.
Agora, o ano é 2020: O debate sobre a eutanásia em Portugal está ao rubro, Moussa Marega é alvo de insultos racistas, os EUA ameaçam guerra com metade do Médio Oriente e Cláudio Ramos faz parte do Big Brother, na TVI.
18 anos depois, o Mundo ainda não atingiu a maioridade.
O maior problema da Dona Zulmira é justamente esse: chamar-se Zulmira. Não é o fanho com que sempre falou, não é a perna coxa sobre a qual sempre andou e nem são sequer os bicos de papagaio que acumulou ao longo dos últimos anos de velhice. O seu verdadeiro drama é, e sempre será, o seu nome.
Porque, durante toda a sua vida, a Dona Zulmira foi sempre a última. Em tudo. Nas listas todas em que estava incluída.
Tudo começou na escola. A Dona Zulmira – que então era só Zulmira, porque ainda não tinha atingido o estatuto de Dona que vem com a idade – odiava a Ana, o Alberto e o Ananias. Também não ia lá muito à bola com a Beatriz e o Bernardo. Quanto muito, tolerava a Carlota e o Carlinhos (que, em adulto, tornou-se só Carlos). Todos esses miúdos com nome dianteiro no alfabeto eram uns privilegiados, achava ela, e haviam de o ser toda a vida.
Já a (Dona) Zulmira, no fundo da sala e do alfabeto, era sempre das últimas para tudo. O que no ensino até não era mau de todo, porque lhe dava tempo para acabar os TPC’s que não tinha feito no dia anterior enquanto a professora verificava os cadernos dos A’s, B’s e C’s. Mas, em contrapartida, era sempre a última a fazer apresentações de trabalhos e recensões, e quando chegava a vez dela, já os colegas estavam demasiado agitados e a mirar o relógio, a contar os minutos que faltavam para saírem da aula.
E foi assim o resto da sua vida. A (Dona) Zulmira nunca era apreciada, porque quando chegava a vez da sua apreciação, já ninguém tinha pachorra para apreciar mais nada.
Chegou até a tentar uma carreira na representação, e escolheu o ridículo nome de artista Ana Abacate, só para garantir que seria sempre das primeiras escolhas quer as listas fossem feitas por ordem de nomes ou de apelidos. Mas, tão pérfida é a sua sorte, que no único casting para o qual foi chamada, a lista tinha sido organizada por idades. E ela, como era das poucas trintonas no conjunto (já tinha principiado tarde a vida de artista), foi de novo colocada no fim, sendo que, quando chegou a sua altura, o papel – de jovem suburbana rebelde, que herda uma fortuna de um tio-avô chamado Carlinhos, curiosamente – já tinha dona.
Hoje em dia, a situação complicou-se mais um pouco. Foi diagnosticado à Dona Zulmira um cancro de mama especialmente pestilento, após o rastreio que é feito anualmente às mulheres da aldeia. Só que esses rastreios são feitos por ordem alfabética, em dias diferentes, e logo aí podem deduzir a mágoa da Dona Zulmira: é que ainda hoje ninguém lhe tira da cabeça que, se tivesse sido chamada mais cedo, como a Almerinda da padaria, o caso seria de mais fácil resolução.
Enfim. Só nos resta desejar muita força à Dona Zulmira, e esperar que até na lista da Morte seja das últimas a ser chamada.
Afonso é uma pessoa relativamente normal em todos os aspectos da vida, excepto no amoroso. Isto porque, desde que se lembra de existir, só foi capaz de amar raparigas chamadas Matilde.
Sim, é verdade: todos temos os nossos gostos. Há quem goste de pessoas morenas ou loiras, altas ou baixas, com óculos, sardas, inteligentes ou rebeldes. Mas, a Afonso, calhou a especificidade de apenas conseguir gostar de Matildes.
Tudo começou com Matilde Sequeira, na escola secundária. Afonso até já tinha tido alguns namoricos em anos anteriores, como todas as crianças, mas nenhum tinha durado particularmente muito tempo – até porque nenhuma das suas efémeras parceiras se chamava Matilde. Esta primeira, então, era jogadora de basquetebol; e nos tempos livres batia em Afonso. Só que este, sempre que via aquele nome tão belo nas costas da camisola da equipa, esquecia o sofrimento por que passava.
A segunda chamava-se Matilde Correia. Era do mesmo curso universitário que Afonso, e aproveitava-se desse facto para lhe pedir que assinasse as aulas da manhã por ela enquanto esta se ia divertir na noite. Afonso não achava aquilo correcto, mas ver o nome dela ali na folha, ainda por cima escrito por si próprio, era para ele uma fonte de atracção inesgotável. Infelizmente, a relação terminou quando esta segunda Matilde desistiu do curso para aprender bartending, já não havendo necessidade de Afonso assinar quaisquer folhas por ela.
A terceira Matilde chamava-se, na verdade, Ana Matilde, mas como era daquelas pessoas que prefere ocultar o primeiro nome, ainda conseguiu enganar Afonso durante algum tempo. Escusado será dizer que essa relação não durou muito tempo.
A quarta foi a relação de maior duração que Afonso alguma vez teve. Ela chamava-se Matilde Pinheiro, o que acrescentava ainda mais à cumplicidade, porque Afonso tinha tirado licenciatura justamente em Dendrologia. Tinha sido a mãe dos dois filhos dele, chamados Matilde e Matildo. Era a esposa ideal, até ao dia em que o deixou porque descobriu que o Instagram do marido estava inundado de outras Matildes, e que a tendência era para a lista aumentar, tal era o vício. Havia a @matilde_couraça69, a @matildinha1987, a própria @serqueiramatilde e até a @matfat.pt.com, que afirmava que só trabalhava no Verão e era para o bronze, embora todos soubessem que vendia droga lá nos subúrbios durante todo o ano.
Mas a verdade é que, apesar desta lista infindável de nomes começados pela letra “M” e acabados em "atilde", ultimamente Afonso não tem tido sorte com mais nenhuma. Na sua idade actual já é difícil partir para grandes conquistas, além de que, depois de tudo o que sofreu, acaba por preferir a quietude de um mar manso em termos de amores.
Só que, no outro dia, enquanto estava a passear, Afonso deu de caras com outra candidata que lhe prendeu imediatamente a atenção. E teria sido talvez a parceira perfeita, não fosse pelo facto de já estar bastante morta e enterrada. Enfim... Pelo menos pela fotografia da lápide – que estava ao lado do nome “Matilde” escrito a letras douradas – parecia-lhe bastante bem.