Muito mais que uma prenda
Desde criança que sempre quis ser um pirata. Não no sentido sério do crime sem escrúpulos e selvajaria que acompanha a profissão, mas pelo sentimento de aventura e liberdade, de luta contra o sistema, da anarquia de viver com emoção e adrenalina; tudo num sentimento romantizado da época dourada da pirataria. Tive espadas e mosquetes, pequenos navios, fascínio pelo mar. Aprendi sobre eles e sonhei. Vivi nessa fantasia, através dela. Ainda hoje o faço, por vezes.
Já vivi muitas vidas e fantasias.
Não passava de uma criança a contemplar as estantes carregadas de livros do avô. Desejando por algo que pudesse ler, que percebesse e fosse adequado. A aguardar uma idade em que pudesse lê-los a todos, a expectativa daqueles mundos por descobrir, excitado pelas possibilidades de futuro. Já não sei como nem porquê, mas escolhi (ou foi-me escolhido) um livro de Emilio Salgari: "O Corsário Negro". E foi assim que começou, com um livro. Seguiram-se saltos em cima da cama, com estocadas imaginárias do meu sabre (e, pela primeira vez: não, isto não é um eufemismo), proclamação de revoluções e sanguinários feitos heróicos. Os restantes livros da série continuavam na estante, e fui-lhes agarrando um a um; acho que até hoje não me foi dada permissão para tal, mas também nunca me foi negada. Este acto não passou despercebido, e os livros desapareceram do seu lugar. A pouco e pouco foram-me sendo oferecidos, sempre que a ocasião o justificava, com uma pequena inscrição no seu interior. Se calhar o meu avô julgou que seriam ainda mais poderosos sendo uma prenda. Com alguma razão, é certo. A verdade é que foram muito mais que uma prenda.
Às pessoas especiais quero dar sempre mais. Não em quantidade, mas algo característico, com significado. Às pessoas especiais quero dar tudo, quero dar o mundo. Não posso. Por isso dou-lhes todo um universo, e mais. Dou-lhes um livro.
Um livro não é só um passatempo, uma ocupação; não é só uma história ou entretenimento.
Quando oferecemos um livro estamos a dar muito mais que isso. Um livro é uma vida, um pedaço de alma, uma experiência, uma viagem. É sentimento.
Ao darmos um livro estamos a dar muito mais. O inatingível por outro meio, toda uma outra vida. Um sem número delas.
Possui o poder de nos transformar, curar, inspirar. É um instrumento como nenhum outro, capaz de nos fazer imaginar, apaixonar, sorrir, acreditar. Muda o que pensamos, ensina-nos.
Transforma-se em algo orgânico, é vida pulsante em caracteres. É sonho e esperança.
Pode ser devastador, mas é sentimento. É aprendizagem.
É mais que viajar. É um portal mágico que nos leva para outro mundo. Deixa-nos viver outra vida, sermos o que quisermos. É tão real que o sentimos fisicamente. Somos detectives, guerreiros, ditadores, inventores, ferreiros, pilotos... Não há limites.
Literatura existe para excitar, espantar ou deslumbrar; para ensinar e relatar. Choramos e rimos, mas nunca seremos iguais.
Desde que existem livros que andamos a viajar. Passado ou futuro, realidade ou ficção, deixam de ser obstáculos a ter em conta. O bilhete é eterno e a viagem infinita.
Vidas são mudadas e influenciadas, escolhas são tomadas. Somos aquelas personagens, reais ou não. Pelas palavras de alguém transformamo-nos, e, connosco, o mundo. Imaginamos o impossível e tentamos replicá-lo. Assim fomos evoluindo como sociedade, como espécie. Foi escrito num livro, foi lido, foi imaginado, foi alcançado. Ultrapassar o limite da imaginação é a nossa meta.
Evoluímos porque imaginamos.
Um livro é imaginação.
Tudo isto, e mais, é o que estamos realmente a oferecer.
É muito mais que uma prenda.
The greatest art offers us images by which to image our lives. And once the imagination has been awakened, it is procreative: through it we can give more than we were given, say more than we had to say.
Lewis Hyde ("The Gift: Creativity and the Artist in the Modern World")